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Personagem errado
14 de outubro de 2013

 

"Damos, muitas vezes, nomes diferentes às coisas: O que para mim são espinhos, vós chamais-lhe rosas."

Pierre Corneille.

 

Gosto muito de ser quem sou. A mulher despachada. Desprendida. Que troca pneu sozinha e que paga suas contas através do árduo trabalho da docência e de algumas consultorias em direito e gestão de pessoas no coaching. Sinto orgulho da minha independência e da minha sobriedade. Por vezes me surpreendo com o fato de conseguir respirar no meio dos desafios.

Um dia, bebendo café com duas alunas especiais, falava sobre o desafio de voltar às aulas depois de um derrame pulmonar. Fiquei alguns dias hospitalizada. Quando retomei minhas atividades é certo que estava frágil corporal e emocionalmente. Geralmente sou bem convincente quando ignoro as dores, mas naquele dia resolvi deixar a sensibilidade aflorar.

As minhas queridas alunas disseram que ainda assim eu estava bem vestida. E que não era possível imaginar que o que me afastou das atividades profissionais foi uma coisa tão grave. Momentaneamente, recuei a xícara de café. Respirei profundamente e perguntei de modo singelo. Como vocês me veem? Um pouco atônitas com a pergunta. Começaram a falar.

"Há professora você está sempre de alto astral. Parece que a vida corre tranquila. Você tem um sorriso fácil. Escreve seus livros e nas aulas é sempre cheia de surpresas. Conta suas histórias de vida e nos faz aprender e rir ao mesmo tempo. Nós imaginamos que sua alma está sempre leve como se não tivesse problemas..." disseram.

Mais um gole de café e mais um suspiro breve. Mil reflexões recaíam nos meus lábios. Um momento em que percebi que construí um personagem perfeito e convincente para as aulas. Uma professora que com problemas no ambiente familiar. Diante do comprometimento. Uma mulher admirável de saltos altos e maquiagem indefectível.

Nesse instante pensei nas modelos e manequins de passarela. E não pela beleza, mas pelos sacrifícios. Ignorar a fome. A dor e o frio. Manter o brilho de seus insustentáveis trajes diante daqueles que anseiam pelo espetáculo. Nada pode sair errado. Nenhum deslize será perdoado diante da dileta plateia. Ser docente é também desfilar conhecimentos sem temores ou titubear.

Tal qual os músicos, manter a boa voz. Similares aos artífices do ferro - devemos lapidar o conhecimento diuturnamente. Meticulosos como bailarinos adaptados em concentrar a dor nos músculos para que nada nos escape. Nem música. Nem vozes e tampouco os aplausos que nos chegam como perguntas ou como um - boa noite - mais afetuoso.

Lecionar é como estar num palco. Ou num tribunal. Ora representamos ou somos julgados. Nos anos 30 ou 50 somente pelo conhecimento ou pelo modo de imposição. Os alunos traziam uma bagagem cultural diversa. Eis que o ensino era privilégio para poucos afortunados. No século XX, porém na transmutação das crises retomamos o debate travado na Idade Média.

Guilherme de Ockham disse: "onde a perspectiva começa a inverter-se e passa ser possível afirmar que a existência precede a essência”. Nítida é a crise do “ter” e do “ser” que nasceu do projeto burguês de Bornhein, mas fora aprofundado por Karl Marx e Max Weber e nominado de materialismo econômico. A escola é um desafio cultural. Dada a fragmentação.

Em suma. Um café filosófico para enredar revelações. Compreendo tão bem os meus alunos carentes de dinheiro. De afeto. Esforçados diante da pálida cultura ofertada no ensino médio e fundamental porque nasci no meio da classe operária. Minha mãe artesã e depois costureira e meu pai motorista de ônibus aposentado. Morrem de orgulho da filha professora.

Por essa razão não oferto aos meus estimados pares - que hoje alunos amanhã profissionais – micropoderes, microtextos e microdesejos. Para eles oferto algo indestrutível pelo materialismo – o conhecimento. Justamente por saber algo muito valioso que eles devem descobrir em breve. Como é valioso conhecer o nosso lugar no mundo.

Não somos vítimas de nada. A não ser de nossas escolhas. Ser pobre não significa ser  ignorante. O material do berço não define o futuro do neonato. Tenho orgulho da casa onde nasci. Desprovidos de material de rica estirpe fui presenteada com a coragem. A melhor de todas as conselheiras. Afinal os covardes e as vítimas sempre recebem um destino pífio.

Os problemas podem ser o demérito ou o incentivo. Problemas familiares e de saúde. Bem como os dissabores da vida diária podem roubar o brilho momentâneo, mas não podem e não devem deixar opaca uma bela, ou divertida história. Sim é verdade já são quatro cirurgias e mais algumas devem chegar, mas ainda tem muita vida para escrever...

Sim. Há problemas financeiros. Filhos para criar. Desafios das mais variadas intempéries para resolver. Mas a história, a Filosofia, o Direito e a Literatura são maiores. E entre um marido e outro acabo agraciada com tempo e inspiração para um novo livro. Entremeando novas piadas sobre a minha condição entre “ser” sozinha e “ter” uma nova destemperança.

Acima de qualquer novo desafio. Serei sempre a Professora Tais Martins. Mestre em Direito Civil. A “baixinha” agitada que fala sem parar. Que vez por outra transita por outras disciplinas - como direito do consumidor, Direito processual, Direito Constitucional, Introdução e história do Direito. Sempre rindo e contando “causos” do escritório.

O teatro perdeu uma boa e inspirada atriz. O meu personagem é confiável e convincente. Com ela supero dores e guardo a minha identidade para o meu lar. O meu refúgio inviolável. Onde guardo preciosos amores. E em segurança posso abrir as minhas asas cheias de poemas. Um asilo para meus cabelos um pouco prateados e todas as lembranças fabulosas que amealhei...

Taís Martins

Escritora, MsC, e professora.

Contato:  taisprof@hotmail.com

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