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Piano esquecido
06 de novembro de 2013

 

Ao som inconfundível de um piano de cauda, me lembro, sem querer lembrar, que esqueci como se toca piano. Tocava tão bem, que por hábito tocava no escuro, sozinha na casa de meus pais. Fechava as portas, as janelas e as cortinas. Por último, fechava os olhos e tocava com todo sentimento que o tocar das teclas me proporcionava, com o som que automaticamente era emitido por elas. Não precisava das partituras depois de algumas vezes que já aprendera a tocar a música.

Após alguns anos, tantas cidades se passaram, tantas casas. O velho piano ficou lá na casa de meus pais, esquecido, velho, desafinado. Aos poucos fui me esquecendo de como se lia as partituras, quais eram as notas musicais. Por último, meus dedos se esqueceram seus movimentos e não sabiam mais a dança sobre o velho piano.

Meus ouvidos ficaram sem minha música, meus dedos sem aquele toque mágico que emitia sons, minha alma perdeu um pouco de sua doçura, dando inveja à minha mente sempre que vê outro tocando esse instrumento, tão único no seu jeito de ser.

Dói lembrar que um dia fui eu quem tocou suas notas, suas músicas, tantos sentimentos. Será que se perderam? Junto com o que mais se perderam? Com o que ficaram no passado? Em que ponto? Como? Tinha que ter sido assim? Teria sido diferente se não tivessem sido tantas mudanças? Tantas casas, moradas? Tantas curvas em meu caminho...

Estranho perceber e saber tão bem sobre um domínio que eu tinha e que tão lentamente se perdeu no tempo e no espaço. Em algum momento em meu trajeto se esvaiu por completo. Há um tempo me questiono se um dia esquecerei a língua alemã como as músicas que tocava em meu velho piano. Assim como a dança dos dedos sobre o piano, parecia algo secundário em minha vida, não faço questão de falar a língua, só mesmo quando preciso. Será porque desejo esquecer? Será que o esquecimento desse conhecimento me aliviaria a alma de outras coisas que gostaria de apagar da minha memória?

O quanto sou eu mesma, responsável por aquilo que minha mente esquece? E o que recorda? Ou sou eu apenas um resultado daquilo que meu cérebro filtra em sua dança neurológica diária, separando o joio do trigo, aquilo que me faz bem daquilo que me faz mal?

Apesar ainda da pouca idade, percebo que muitas coisas se perderam em meu passado, e voltam na lembrança de outrem. E vice versa. Acontecimentos coletivos que são lembrados por um, esquecidos por outro, rico em detalhes na memória de um, distorcidos na lembrança de outro. Não somos velhos para esquecer, mas vejo nitidamente que faz parte da vida: esquecemos muito de tanto e lembramos muito de pouco. Acredito que lembramos o que precisamos e esquecemos ainda mais o que precisamos esquecer: dores, mágoas, episódios tristes que são parte de qualquer vida: pessoas, momentos. O que fica? O mesmo. Passamos uma vida inteira tentando equilibrar dentro de nós mesmos o que deve ficar em nossa lembrança e o que deve ser esquecido. E muitas vezes o que queremos esquecer é o que mais fica lá, latente, pulsante, como uma ferida que não se fecha.

Eu não queria ter esquecido o meu velho piano, minhas músicas. Será que devo voltar ao meu velho piano? O que mais voltaria com ele? Um pedaço de mim mesma? Uma parte doce de minha alma? Inocência perdida? Não sei.

Quanto à língua alemã, não sei se me importo. Talvez justamente por ter sido um conhecimento adquirido à duras penas, confesso que não me importo, porque só eu sei a dor que me causa certas lembranças.

Se acaso voltar a tocar piano e esquecer o alemão, será que significaria recuperar uma doçura perdida e fechar uma velha cicatriz? Eu realmente não sei. Não importa. A vida decidirá por mim, como tudo mais: os amores que cruzam meu caminho, os amigos, os trabalhos e tanto mais que parecem fugir de meu domínio. Resigno-me ao saber da vida, me entrego ao desconhecido, com o desejo de ir logo ali comprar umas partituras. Doces melodias ao tocar dos meus dedos, talvez doces lembranças, doces caminhos.

Quem sabe, outra vez...uma segunda chance...

 

CAROLINA VILA NOVA

ESCRITORA E ROTEIRISTA, de Curitiba.

Contato: focuslife@playtac.com

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